Meia Palavra

 


Neste ano, parece-me que estamos a viver Janeiro em Dezembro. Ontem eu perguntei ao meu vizinho se esse ano haveria o Natal. Como se explica a falta de lengalenga dos madjonidjonis retornando para casa? Não vejo nada de caixas de bebidas e comeretes nem música alta dos madjonidjonis! Os salões estão desertos, será que já não fazem as mechas e nem pintam os cabelos? Como é um cristão fanático, respondeu-me: “Jesus sempre nasce, isso nunca falha”, em fim eu me referia às pompas, ao espírito natalino, o verdadeiro khesemussi. Apesar de várias incertezas, duma certeza eu tinha, que eu trabalhei muito este ano, os biscates vinham um atrás do outro, se fosse um influencer digital diria que os contractos com as empresas vinham um atrás do outro. Estava na hora de receber o meu xitique, e produtos alimentares das poupanças.

Afinal, no natal anterior decidiu-se, que este natal devia ser passado em Tsalala, na minha casa. Tinha tudo para ser o melhor dia para mim. Minha mãe havia convencido a todos que, aquele vinte e cinco seria passado na minha casa, o seu primogénito. O intento era duplo, reunir a família como era o costume e apresentar a casa do mais velho dos Munguambe.

Mas eu, eu tinha uma intenção mais grave, repor o respeito. Acordei todo feliz, aliás nem dormi. Passei a noite acertando cada detalhe e lapidando o meu discurso, afinal era o primeiro natal em minha própria casa.

Quando nas primeiras horas mandei os miúdos abaterem os caprinos, eis que José liga, e com a arrogância que lhe caracteriza, procurou saber de mim, o mais velho se estava tudo pronto:

Olha, Carlitos, o que trago? Há tudo?.... Venho só com as meninas, a Luísa, aquela malandra perdeu o voo.

Dei um troco muito alto, retaliei com arrogância. Era hora de voltar a pôr a ordem na família. O velho Mutume quando partia deu-me a responsabilidade de figura paterna para os meus irmãos, porém nunca havia exercido porque a vida sempre me foi dura, ovelha negra da família? Não sei, mas todos os meus putos estão bem na vida, bons empregos, carros de luxo, outros empresários, vivem em mansões e filhos se formando na Europa. Por isso nenhum desses meninos me davam o devido respeito pelo facto de eu ter de levar mais de quatro décadas na casa paterna. Naquele natal eu celebrava uma antiga e tão almejada vitória, ter casa própria.

Desconfiado das condições criadas, José foi o primeiro a chegar, barrigudo, ostentava o Ranger, a maçã do Steve Jobs e exibia as crianças. A chegada dele aquecera aquela manhã, reclamou de tudo. Sua reputação não lhe permitia passar o natal, primeiro em Tsalala e segundo numa casa como aquela. Nervoso, fui buscar uma cervejinha para acalmar os nervos, e ganhar a coragem de enfrentar o último dos meus irmãos.

O velho tinha razão, não temos mesmo avó, sem Samoras somos nada. Abanava a cabeça enquanto batia mais um gole.

No meio dessas insatisfações, chegou André, o do meio, era equilibrado em tudo. Tinha razão quem disse “in medius virtus est”. A chegada de André acalmou o ânimo dos dois.

Chegava a hora sexta e os oito malandros iam se completando. Cada um chegava com seu colman e suas reclamações. Ironia do destino. Quando passei séculos e noites planeando aquele dia, todos chegavam e em cinco segundos teciam alguma dúvida, insatisfação e/ou reclamação. A Zabelinha, a única moça que papá nos deixou, foi mais longe:

Eu insisti tanto que era uma péssima ideia passar o natal em Tsalala, disse que devia ser em minha casa em Vilanculos,  vossa mãe sabe disso.

Estavam todos insatisfeitos. Só a minha mãe se alegrava, para ela, era uma festa em que o seu primogénito inaugurava a sua casa. Não é me gabar, mas todos sabiam, a velha criou um afecto especial por mim, tínhamos uma longa história juntos, desde o ventre.

Aquele natal devia ser uma confraternização e uma reunião-balanço. Fazíamos sempre assim, o natal era uma oportunidade de reencontro e balanço.

Minha mãe repôs a ordem e o almoço foi saudável, era certo que cada um trazia sua bebida e alguns até requisitaram alguns pratos, mas almoçou-se tranquilamente. À medida do álcool até surgiam piadas que levantaram altas gargalhadas. Todos riram e foram alegres, as diferenças estavam enterradas, parecia um encontro infantil. Cada um se lembrava da sua infância, daqueles momentos em que ninguém tinha nada e todos à volta da fogueira escutavam o velho Mutume que, em suas estórias, pregava a humildade. O velho, apesar de ser endinheirado, ensinava-nos que nada vem do nada, que o sucesso exige sacrifício, mas que também há sucessos sem sacrifícios e há sacrifícios sem sucesso. Que a vida nem sempre é justa e o universo nem sempre recompensa aos corajosos.

Cada um se olhava no ontem e no hoje. Estávamos todos realizados, era essa a satisfação da minha mãe, o não bem-sucedido era só eu, não é me fazer de coitadinho, a vida nunca tinha sido justa comigo, talvez por ser mais velho, talvez a vida tivesse me usado para experimentos.

Quando chegou o momento do balanço, todos falavam das suas actividades, a infidelidade nos negócios, o stress das crianças e das esposas. Por sua vez, as cunhadas lamentavam a falta de atenção e altruísmo dos irmãos. A Carla, a esposa do Leonel, dizia não entender o porquê do mais velho nunca ter contado com o apoio dos irmãos para levantar a sua tipo 3. A casa levou a mais de cinco anos, ninguém pôs dedo.

A velha com o espírito materno, outra vez, convocou a alegria, em seu discurso não apontou a ninguém, não lamentou nada. Falou do natal, seu significado e espalhou alegria. Sabia muito sobre a data, estudara numa missão católica.

Todos renasceram e até rezou-se um acto de contrição e a oração de São Francisco de Assis.

Onde houver ódio, que eu leve o amor.

Para encerrar, eu devia falar, tinha o discurso pronto, Mamã chamou-me atenção – Aos teus irmãos não fale sobre o teu pai, não fale da tua prisão nem da indiferença deles. Meia palavra basta.

Cumpri uma parte. – Tenho os melhores irmãos, como a mãe costuma dizer “Deus é bom. Fez-me o primeiro de muitos sortudos. Alguns tiveram sorte e de bandeja, outros criaram a sua própria sorte, só eu que fui a excepção, o velho nunca perdeu a razão, morreu lúcido... Contudo, também morro satisfeito, deixei uma memória perene, recebi esses mufanas arrogantes em minha casa. – Sublinhei– “Minha casa”.

Minha mãe olhou-me sem sorriso, daí que, me corrigi –  Na minha humilde casa. – Disse forçado e acrescentei – Perdoem-me a insatisfação, esta MINHA CASA nada tem, porém, vos quis receber aqui. O velho está satisfeito por nos ver assim, que todos os dias sejam natal.

Festas felizes!

Exilado & Nunes Cristóvão

 

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