Mortes certas, arma incerta



Várias são as medidas estabelecidas pelos governos, para evitar as graves e desastrosas consequências que a pandemia COVID-19 pode vir a causar (acredito que essas medidas já são por nós conhecidas). Mas dentro destas todas prevenções existe uma famosíssima e frequentemente proferida frase: “fiquem em casa”.Mais do que um simples conselho, é uma ordem. Como se os ordenadores amassem, de facto, as nossas vidas. Não me tenciono opor a tais ordens, mas olhemos para o sector do comércio informal, em particular, que constitui a base de subsistência de milhares de famílias moçambicanas. É um dos mais afectados por essa pandemia, e muitos dos seus operadores estão estagnados restando-lhes apenas a esperança de que um dia poderão retomar as suas actividades, embora ninguém saiba ainda qual será esse dia. É muito mais difícil para nós pobres, é como se o governo gritasse bem alto em nossos ouvidos “por favor morram em vossas casas, não queremos cadáveres nas ruas”.Infelizmente, no fim será tudo assim. A única incerteza é da arma (fome ou vírus), mas a morte é a dura certeza que carregamos. É uma triste realidade.

Mas sabem o que é mais triste? É essa hipócrita preocupação dos grandes pelos pequenos. Se nos amassem e quisessem que ficássemos em casa, não fariam alguma coisa pelos mais desfavorecidos? Nestes incomuns dias, o povo não quer mais nada que um simples prato de comida. Mas parece ser mais difícil dar isso, que entulhá-lo de pânico sobre a devastação do povo ocidental pela pandemia. Nos poupem, por favor! A gente já tem várias receitas para morrer, desde a fome até aos ataques ignorados, em algumas partes da nação.

Uma vez escutei um senhor, num transporte público, vulgo chapa cem: “Não estamos em condições de ficar em casa. Não, não estamos. Eu não teria a coragem de assistir aos esqueletos da minha esposa deixando escapar o espírito por falta de pão. Sabem, eu tenho uma filha de 18 anos, ela é muito inteligente, ingressou na Universidade este ano, gosto muito dela. Ontem me veio dizer que precisa de um telefone Android para as aulas online! E que deveria lhe arrendar um quarto na vila, pois em nosso bairro, rede telefónica não há! Ou que deveria comprar uma Televisão para acompanhar as aulas num programa chamado telescola! Mas que TV? Se no bairro nem energia há! Sabem, olhei para ela com um coração bem partido e lhe disse: minha filha, a gente é pobre! Se a escola é tão impossível assim, melhor abandoná-la, certamente que não é para ti. Amanhã bem cedo, iremos estudar a terra nas machambas, parece ser mais viável, não precisarás de telemóvel, televisor, casa de renda na vila, de valor de fichas que já era um saco para mim e, nem de energia que o governo nos recusa a dar, pois o Sol se encarregará de nos dar o seu grátis brilho.

O mais incrível é que minha filha não escutou os meus conselhos, ignorou-me totalmente, e todos os dias tende a percorrer 15 km a pé, rumo à casa de uma das colegas, cita na vila, para assistir a tal novela académica, mas sei que não vão durar muito estas viagens, porque a polícia municipal vai-lhe intersectar e puni-la. No fim me vai dar razão, pois este governo não está preparado a lidar com pobres! Todos, no transporte colectivo, ficámos boquiabertos, mesmo com máscaras, aquele desabafo era mesmo verdadeiro e muitos nos identificámos com tais sentimentos. E o cobrador que ouvia atentamente a história, finalizou com uma voz bem audível: o importante é ficarmos mesmo em casa, que mais nos resta fazer? Nós os transportadores só podemos arrumar as viaturas, pois estamos todos num dilema: a gente vai morrer, a incerteza está no tipo de arma, fome ou vírus. Mas a gente vai morrer.

In Efeitos de Quarentena disponível para download

Enviar um comentário

0 Comentários