Mwanda wambone Baba! (ADEUS PAI)

 

 


Mwanda wambone Baba![1](ADEUS PAI)

 

Ente querido e eternamente prezado pai. Sinceras desculpas por te incomodar a altas horas, se é que no atemporal onde te encontras ainda serve o relógio que, ao que me lembro, andava preso ao teu pulso. É que para mim, estas são as únicas horas capazes de serem tempo, as outras passaram a ser do sem-tempo, devido às circunstâncias. Perdoa-me também a velocidade no pronunciamento das palavras, não é para gozar da tua paciência, mas preciso dizer tudo o que tenho, neste pouco tempo, antes que me alcancem. Espero que lá no etéreo berço, onde a tua alma repousa, estejas gozando da bendita paz que sempre te desejámos; para mim esta palavra – paz – é também já um falecido.

Papá, eu estou aqui para me despedir de ti e pedir a tua protecção, rumo a incerta e fatídica expedição, em busca da segurança. Sim, pai, lembras-te que em vida, sempre dizias que a residência de um homem era onde se encontrasse? Que deveria amá-la e a aproveitar, enquanto pudesse, sem nunca se deixar possuir por ela, pois tarde ou cedo iria abandoná-la, em busca da sua edificação como homem. Acrescentavas que tinha sido assim desde os tempos remotos: o homem é um perene nómada. Quem dera estivesses errado!! Pois é, eu vivi preparado para isto, sabia que em algum momento, esse dia chegaria. Só não sabia que seria tão prematuramente. Infelizmente, este dia chegou, pai e, para o meu azar, em circunstâncias dolorosas.

Para mim e para a minha geração, esta migração sucede da pior forma. Era suposto que cada um programasse e aviasse voluntariamente as malas. Contudo, somos forçados por, não se sabe quem, a amputarmo-nos das nossas raízes, deixando tudo o que um dia amamos e fez sentido para nós, rumo aonde Judas perdeu as botas.

A nossa Terra tornou-se o pior lugar de se estar no mundo, pai. Um primitivo altar em que, dia e noite são oferecidas, em holocausto, vítimas humanas em sacrifício a um insaciável deus. Os impiedosos sacerdotes desse furioso senhor, caçam e imolam sem dó, desde o mais indefeso ao mais inocente dos habitantes desta Terra. Começou como uma passageira e sazonal ventania, pensou-se que ia passar com o tempo, mas o que passou foi apenas o tempo. Anos se foram, o que parecia passageiro provou que veio para ficar, alastrou-se de uma zona a outra, já era incontrolável como pandemia. Os nossos valentes e corajosos combatentes fizeram e fazem de tudo para nos defender. Mas lutar contra um inimigo desconhecido é como atirar no escuro. Ninguém sabe donde vêm, quem são ou, o que querem, na nossa Terra. Se ao menos mostrassem as suas caras, pai. Mas não, as únicas caras que se vêm, são de caveiras suspensas nas ruas.

Em pouco tempo a nossa super-povoada Terra ficou deserta. Homens, mulheres e crianças foram dramática e drasticamente fuzilados. Na família, eu sou o único que ficou: a mana Esperança foi a primeira, deixou o mundo, trazendo alguém ao mesmo, na mata e sozinha, é triste e miraculoso como aconteceu, ainda lacrimejo, só de pensar nos detalhes, a bebé, que mais tarde foi achada, teve o nome de Salva. O tio Felisberto, o coxo, foi o segundo, coitado nem conseguiu chegar ao portão, foi alvejado nas costas ainda tentando segurar as muletas. A cunhada Belita e o Mano Castigo... desses nem se sabe onde subjazem os cadáveres, talvez ao relento a mercê dos abutres, como milhares de outros aldeiões dos quais se desconhece o paradeiro.

Na altura, ficámos a mamã e eu, já que ela passava o tempo apregoando que a terra é a história do homem, o vínculo entre o passado e o presente. Nela estão escritos os feitos e as realizações dos que nos precederam e nela nós deixamos as nossas marcas. É um legado inalienável, a jóia mais preciosa do tesouro. Dizia também que a relação entre o Homem e a Terra ultrapassa o mero sentido mecânico, é um relacionamento vital, pois nós somos uma parte da Terra, nossa mãe comum. E que, como africanos, essa relação é acrescida, nós somos "um" com a Terra, pois compartilhamos a saúde, sentimentos e emoções com ela. Por isso, deveria ser acarinhada, amada, respeitada e defendida com unhas e garras. Quem ousasse ferir a Mãe-Terra teria de passar pelos nossos cadáveres.

Juntos sobrevivemos até quando, certo dia, enquanto almoçávamos, escutaram-se disparos, seguidos de gritos clamando pelo socorro. Pedi à nossa velha para que nos escondêssemos, mas ela manteve-se renitente, alegando que não trairia os seus princípios, abandonando a casa a hóspedes que nem pediram licença; insisti, mas foi a esmo, ela não se moveu. Segundos depois, um exército armado até aos dentes invadiu a nossa casa, apoderou-se dela, profanou sucessivamente o seu corpo e, quando se fartou inundou-a com uma chuva de balas; mais tarde, foi achada, como veio ao mundo, jazendo no pátio.

Em fim, pai, disse que o tempo me era escasso. Já não deveria estar aqui, à propósito. Todavia, saio como um barco lançado aleatoriamente ao alto mar, consciente de que na viagem poderei encontrar mais tempestades e contratempos que bonanças, no entanto, creio que em algum lugar existe um porto seguro. Por isso peço-te, óh pai, para que me protejas de todos os perigos e guies os meus passos em caminhos seguros. Aproveito também pedir pelos que já partiram e pelos co-tripulantes do vagante barco. Ainda, se já não estou a pedir muito, que acompanhes também aqueles que, dia e noite, tudo fazem para defenderem a nossa bela pátria e o povo, dos malfeitores sem escrúpulos. Prontos, tenho de correr, pois já oiço o som de mais um disparo. Adeus pai.

Por Helton Ubisse e Nunes Cristóvão



[1] Do Ximakonde, Adeus Pai. LÍngua falada a Norte do Pais, Cabo Delgado.

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