Carta aberta a partir do além

 


Em vida respondia pelo nome de Hortilêncio Abadias Jaculosse, era duma família muito pobre, mas isso não me impediu de mudar o círculo dos acontecimentos e da situação financeira da minha família desde os familiares directos até aos familiares ocasionais. Para quem é da minha geração sabe o quão fui batalhador e vitorioso ainda muito novo. Com os meus 16 anos já tinha o meu próprio camião que usava para carregar areia, o que firmou minha independência financeira tão cedo.

Mesmo com os bens adquiridos na adolescência não perdi a cabeça, em nenhum momento gastei meu dinheiro com prostitutas ou em bebidas, não que eu condeno os meus companheiros que gastaram dessa forma, porque hoje por cá me arrependo por não ter aproveitado a vida da melhor forma.

Sempre procurei lutar e comer o fruto do meu próprio suor. Se para uns a motivação para ir em busca do conforto é esposa, para outros filhos, para mim era apenas família. Isso mesmo, família. Mas como posso dizer família se aos 16 anos não tinha esposa nem filhos? Geralmente, ou melhor para muitos família refere-se à esposa e filhos, mas para mim eram tios, primos, sobrinhos, amigos e amigos de amigos.

Como disse antes nasci numa família pobre no verdadeiro sentido, mas eu escutei bem aquele célebre ditado que diz “nascer pobre é natural, mas morrer pobre é tolice”. Sempre procurei dar o melhor de mim para ajudar os meus pais no cuidado da casa, aos meus irmãos no pagamento das propinas e outras despesas escolares.

Durante a vida aprendi que enquanto tivermos bens materiais e uma posição bem aceitável sempre teremos muitas pessoas por perto. Pessoas que estarão sempre prontas para nos esbanjar, nos lamber e se beneficiar do que possuímos. Quando os meus negócios começaram a se internacionalizar, o número de amigos ia aumentando a cada dia. Dizem que pessoas ricas brincam entre elas, no meu caso era diferente, tinha uma nação de pobres que se passavam de amigos por alimentar e ainda cuidar dos seus filhos. Pessoas que não tinham outra coisa para fazer que multiplicar filhos confiando na minha caridade.

Quebrei o ciclo da pobreza na família. Fui proclamado por crianças e jovens, adultos e velhos, homens e mulheres sem distinção. Era carinhosamente chamado pelos melhores títulos daquela época. Até que…maldito aquele dia que a doença começou a consumir o meu pobre corpo.

Os amigos que eu tinha começaram a evaporar como água a ferver na xicandarinha da tia Regina, familiares jogando xingombela com o meu corpo, os da família materna me mandando para os da família paterna, estes por sua vez me mandavam para a família da minha esposa.

E no fim de tudo fui cair nas mãos da minha coitada mãe que nem se quer um alfinete teve enquanto eu era tratado por senhor Nyatimali. Ela foi a única que cuidou de mim quando ninguém me queria por perto, diziam que poderia atrair a morte para as suas dóceis famílias.

Eu aprendi muita coisa enquanto era peregrino na terra, mas uma das coisas que nunca vou esquecer é que verdadeiros amigos são raros e talvez não existem, mas também aprendi que mãe é sempre mãe.

Não me arrependo por ter ajudado uma geração de ingratos, mas pelo menos rezem pelo meu descanso, cá doutro lado as coisas não estão fáceis. Desde que cheguei estou a empurrar o sol só descansei hoje porque tem um recém-chegado que ainda tem o cheiro mundano. Aproveitei esse tempinho para fazer o que poderia ter feito ainda na terra, mas andava muito ocupado em querer acumular mais e mais somas de dinheiro: ESCREVER.

Na próxima semana será o meu julgamento. Se me perguntarem o que fiz de importante aí na terra eu direi…. Porra a minha tinta acabou e cá ninguém mais vende. Adeus

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